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sexta-feira, 28 de junho de 2019

"MAIS VALE SABEDORIA DO QUE ARMAS" ( Ecl 9,18a)


“Mais vale sabedoria do que armas” (Ecl 9,18a, Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada). A Edição Pastoral usa o termo "instrumentos de guerra". A palavra usada por várias traduções em grego é δύναμιν, que significa a força humana com todos os seus instrumentos de batalha. Os versículos 14-15 do capítulo 9 de Eclesiastes indicam que o contexto trata da força da sabedoria que luta contra as "máquinas de guerra". Assim, o hagiógrafo apresenta o valor superior da sabedoria comparado com as armas (poder, força humana violenta).
É notório que o Antigo Testamento não proíbe o uso de armas para defesa e conquista do seu povo. Os relatos bíblicos apresentam vários episódios permeados pelo uso da violência armada (Cf. Js 6; Jz 8,13-21; 1Sm 4,1-11; 2Sm 8,1-13). No entanto, o “Decálogo” (dez mandamentos) proíbe o assassinato: “Não matarás” (Ex 20, 13).
Para muitos estudiosos das línguas bíblicas, a tradução mais adequada do quinto mandamento seria: “Não assassinarás”. Os verbos assassinar e matar têm significados diferentes no Antigo Testamento. Vejamos:
a) ASSASSINAR (Ratsach): É quando se tem a intenção de tirar a vida, quando o crime é premeditado (Cf. Gn 4,8);
b) MATAR (Muwtn): Quando é um acidente e não tem intenção de tirar a vida do outro (Cf. Dt 19,5).
A partir dessa distinção do significado de assassinar e matar, com base nos textos bíblicos, é possível compreender com clareza o tema da legítima defesa. Em Êxodo 22,2-3, lemos: "Se um ladrão for surpreendido arrombando um muro e sendo ferido morrer, quem o feriu não será culpado de sangue ..." Nota-se que não existia a intenção de matar. Quem surpreendeu o ladrão apenas teve a intenção de ferir, a morte poderia ter ou não ocorrido. Se o ladrão tivesse morrido teria acontecido um acidente. Segunda parte : "Se, porém, fizer isso depois de ter nascido o sol, quem o ferir será culpado de sangue" . Por que é culpado se for depois do nascer do sol? Durante a noite fica difícil discernir se o intruso é um assassino ou ladrão. Porém, à luz do dia, quem feriu torna-se culpado, porque teria outras possibilidades de defesa. Diante do conflito é mais prudente se esconder, fugir do que reagir com violência (Cf. Pv 22,3; 27,12). Caso contrário, a defesa torna-se vingança, crime de assassinato.
A compreensão da legítima defesa, que é um direito natural, deve ser feita a partir do Novo Testamento, principalmente levando em consideração os ensinamentos de Jesus. O “Príncipe da Paz” ensinou os caminhos do amor, da paz, da não violência: “felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” ( Mt 5, 9). Ele repreendeu a Pedro por ter usado uma espada para ferir o soldado, “pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão” (Mt 26, 52).
Em Lc 22, 35-38, Jesus manda que seus apóstolos comprem uma espada. No entanto, esse texto não pode ser entendido no seu sentido literal, pois haveria uma contradição com os ensinamentos de Jesus. A espada do cristão é a Palavra, seu escudo é a fé, seu capacete é a salvação (Cf. Ef 6, 16-17). Não existe nenhuma passagem do Novo Testamento que indica que os cristãos reagiram com armas diante das perseguições dos Romanos ou que faça uma apologia ao uso de armas para legítima defesa. Pelo contrário, perseguidos, maltratados, feridos pelos seus opositores, os cristãos entregaram suas vidas sem nenhuma resistência armada.
O uso da espada, no cristianismo, começou com a união da Igreja com o Império Romano. Até os dois primeiros séculos, os cristãos eram proibidos de participarem do exército. Os que eram batizados, sendo soldados, tinham que deixar o exército romano. "Uma cuidadosa análise de toda a informação disponível mostra que, até o tempo de Marco Aurélio (121-180), nenhum cristão tornou-se soldado; e nenhum soldado, depois de tornar-se cristão, permanecia no serviço militar" (E.A. BARNES, 1947, p. 333). No cristianismo, a paz e a segurança não são conquistadas pelas forças das armas e da violência. A paz é fruto da justiça, da solidariedade. A segurança da sociedade é de responsabilidade da autoridade constituída. Compete a essa autoridade, quando necessário, o uso da espada para punir quem pratica o mal e fazer justiça (Cf. Rm 13, 4-5).
Hoje, nos deparamos com inúmeros “cristãos armamentistas”. Uma realidade que não deve ser motivo de tanta estranheza, pois, no primeiro século do cristianismo, religiosos judeus e alguns discípulos de Jesus acreditavam no poder das armas como solução para os problemas sociais. No tempo de Jesus, existia um grupo religioso entre os judeus, os zelotes. Na concepção dos zelotes, o messias deveria ser um guerreiro que lutasse com armas. No grupo dos apóstolos, Simão era conhecido como o zelote (Cf. Mc 3,18). Entre os apóstolos de Jesus alguns pensavam como os zelotes. Jesus não correspondeu aos desejos dos zelotes. Entra em Jerusalém não como um rei-guerreiro montado em um cavalo, mas sim como um rei humilde, montando em jumento (Cf. Mt 21, 1-11). Diferente dos zelotes, Jesus não desejava construir um reino terreno. "Jesus respondeu: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue às autoridades dos judeus. Mas agora o meu reino não é daqui" (Jo 18,36-37). O reino de Jesus não é dos acreditam na força das armas, dos poderosos desse mundo que usam do poder armamentista para conquistar, dominar. Para quem acreditava em uma libertação através das armas e não da obediência ao Pai, o Mestre fez a seguinte correção: “Mas Jesus disse a Pedro: Guarde a espada na bainha. Por acaso não vou beber o cálice que o Pai me deu?" (Jo 18,11). Jesus recriminou o apóstolo que usou de violência. Sua arma não era a espada, mas sua obediência ao Pai. Suas armas eram: amor, humildade e paz. São essas as armas que os seguidores de Jesus devem ter.
O discurso de muitos “religiosos armamentistas” (cristãos das mais diversas denominações religiosas), que fazem apologia à posse e ao porte de armas com o argumento de que são úteis para o direito à legítima defesa não tem coerência com a mensagem cristã. O direito à legítima defesa jamais pode ser usado para legitimar o uso de arma ou para tirar a vida de alguém na ocasião em que o indivíduo achar conveniente. A legítima defesa é justificável quando todos os recursos forem esgotados. Portanto, a morte do agressor só é justificada em situações extremas para preservar a própria vida ou salvar a vida do inocente. "Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor: Se alguém, para se defender, usar de violência mais do que o necessário, seu ato será ilícito (destaques nossos). Mas, se a violência for repelida com medida, será lícito... E não é necessário para a salvação omitir este ato de comedida proteção para evitar matar o outro, porque, antes da de outrem, se está obrigado a cuidar da própria vida" (CIC, n.2264).
Recentemente, o papa Francisco fez uma declaração criticando o uso da força das armas. O líder da Igreja Católica Romana pediu a proibição das armas para que o mundo tenha paz e não conviva “com medo da guerra”. “Pessoas que fabricam armas ou investem na indústria armamentista estão sendo hipócritas se chamarem a si próprias de cristãs”, disse o Papa Francisco. Continua o papa: “Nós realmente queremos a paz? Então, vamos banir as armas para não ter que viver no medo da guerra”.
Diante do que foi refletido, infere-se que a posse e o porte de armas não são escolhas adequadas para o cristão. A segurança dos que acreditam em Jesus e sua legítima defesa não se encontram na força das armas, mas na disponibilidade para promover uma sociedade mais justa e fraterna. A violência, a guerra e o desejo de extermínio do outro têm suas origens na ausência de amor no coração da humanidade, gerando egoísmo, desrespeito, desigualdade. O caminho mais prudente consiste em compreender que “mais vale sabedoria que armas” (Ecl 9, 18a), que mais vale “guardar a espada” do que “apontá-la” como única solução para a defesa da vida.
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Lúcio Rufino Pinheiro