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quarta-feira, 13 de junho de 2018

A MARGINALIZAÇÃO DO CORPO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

O estoicismo, doutrina filosófica fundada por Zenão de Cício (335-264 a.C.), combateu veementemente as paixões do corpo como meio para ser feliz. Na concepção estoica, quanto mais o ser humano negasse o prazer corporal, “inimigo do homem sábio”, quanto mais sufocasse seus desejos, sentimentos exteriores, maiores possibilidades teria de ascender na vida virtuosa. Para os estoicos, a paixão era má e as emoções eram vícios da alma. A relação do homem com seus sentimentos deveria ser de apatia (indiferença) para que o mesmo não perdesse sua racionalidade, seu poder de decisão.
Platão (428 a.C.), um dos mais conceituados filósofos da Grécia, desenvolveu uma reflexão acerca do corpo. Em sua antropologia, dividiu o homem em duas dimensões: corpo e alma. Em comparação com a alma, o corpo é inferior. Na concepção platônica, o “corpo é o cárcere da alma”. A libertação parcial dessa prisão era possível através da não realização dos desejos, vontades do corpo. Cabia à alma racional ser a guia para que os desejos, concupiscências não dominassem o agir do homem. Abster-se dos prazeres corporais, para Platão, era o meio eficaz para que o homem pudesse chegar ao verdadeiro conhecimento ou contemplação do mundo ideal, perfeito. Na filosofia platônica, o corpo aparece como algo danoso que torna o ser humano em “mísero escravo”.
O Maniqueísmo, uma espécie de filosofia religiosa que surgiu na Pérsia no século III d.C. com Mani, levantou sua bandeira de combate a tudo que dizia respeito à materialidade. Na visão maniqueísta, existia no universo um combate entre o bem e o mal. O bem só era possível encontrá-lo no espírito e no mundo espiritual e o mal era perceptível na matéria, no corpo. Para os maniqueístas, a natureza material é má e perversa e precisava ser depreciada.
As concepções filosóficas do estoicismo, de Platão e maniqueísmo, marcadas pela marginalização da materialidade, do corpo e de suas paixões e sentimentos, influenciaram as diversas formas de vivência da espiritualidade cristã. Desde o monaquismo cristão, passando pela vida religiosa e chegando aos vários grupos religiosos dos nossos tempos, percebemos características fortes dessas concepções filosóficas mencionadas, principalmente no que diz respeito à visão negativa e ao combate a tudo que esteja relacionado à corporeidade. O corpo e seus desejos foram vistos como pecaminosos e nocivos para alma.
O combate ao corpo foi visto, em muitas experiências espirituais da vida cristã, como necessário para o crescimento da vida espiritual. Recordemos a história dos santos medievais que maltratavam o corpo com duras regras disciplinares. O itinerário proposto para a vida de santidade implicava na capacidade de combater os prazeres carnais: sexo, comer, beber, dormir, sorrir, etc. O corpo precisava ser punido, disciplinado com práticas penitenciais duríssimas. O cilício, cinto ou cordão com pontas de ferro usado por debaixo da roupa, foi um instrumento muito usado pelos penitentes para maltratar o corpo.
O combate ao corpo como caminho de santidade também vigorou na modernidade. No início da modernidade, a vida de São Luís de Gonzaga (1591) era apontada como modelo de pureza. Segundo alguns relatos lendários, Luís Gonzaga teria negado, no dia do seu nascimento, mamar no peito da própria mãe por considerar um ato pecaminoso. Seu ato de negação ao corpo da própria mãe foi propagado como um valor, uma virtude de santidade. Práticas ascéticas para punir os homens e seus desejosos pecaminosos, foram usadas na modernidade. Era comum, na sexta-feira, dia de recordação da Paixão e Morte de Jesus, os religiosos e leigos penitentes, fazerem uso da “disciplina”, uma espécie de chicote de cordas usado numa sessão de autoflagelo.
Uma espiritualidade cristã equilibrada passa pela purificação desses pensamentos e práticas ascéticas que marginalizaram o corpo. É necessário um resgate aos conceitos positivos relacionados ao corpo que se encontram nos ensinamentos de Jesus e nos escritos paulinos.
Jesus falava do seu próprio corpo como santuário (Cf. Jo 2, 21). O fato de Jesus ter assumido nossa natureza humana (perfeita), o corpo passa a ter uma grande dignidade. Seu projeto de salvação passa pela corporeidade. Ele não veio salvar simplesmente o espírito do homem, mas o ser humano completo (corpo e espírito), convidando-o para uma vida em plenitude.
Nos escritos paulinos, temos uma visão positiva do corpo. Paulo usa a imagem do corpo para falar do mistério da Igreja e seus carismas (Cf. Ef 5,30; 1Cor 12,12-27 ). O corpo, na compreensão paulina, é o lugar onde Deus habita, “templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19) e o meio de glorificação: “Glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 20).
Uma compreensão sensata do corpo não o marginaliza como mau e perverso, nem o exalta demasiadamente ao ponto de cultuá-lo, prática comum em nossos dias. Hoje, alguns dos “templos” mais frequentados são as academias e salões de beleza. A estética corporal é valorizada, por muitos, mais do que o ser e agir ético.
Portanto, diante do que foi apresentado, é necessário encontramos um ponto de equilíbrio do modo como devemos tratar o corpo. Quem marginaliza o corpo pode cair no erro de uma vivência espiritual de negação de realidades inerentes ao homem. Quem exalta demasiadamente o corpo, pode cair no hedonismo ou relativismo moral. O ponto de equilíbrio do modo como devemos tratar o corpo encontra-se no discernimento pela escolha do que convém e edifica (Cf. 1Cor 10,23).

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Lúcio Rufino Pinheiro

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