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quarta-feira, 13 de junho de 2018

SER COMO DEUS: PECADO OU UM PROJETO DIVINO PARA O HOMEM?

“Mas sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3,5).
A fala da serpente para Eva: “Sereis como deuses” (ἔσεσθε ὡς θεοὶ - Trad. LXX), sempre foi interpretada na perspectiva do pecado, como uma pretensão humana motivada pelo orgulho. No entanto, hoje, alguns teólogos têm feito uma interpretação diferente de Gn 3,5. “Sereis como deuses”, não constitui em si mesmo um pecado, mas um projeto do próprio Deus para o homem.
A deificação, o processo de ser como Deus, não se caracteriza como pecado, mas trata-se de uma meta que deve ser buscada por todos através de um itinerário correto. Os argumentos para essa afirmação, encontram-se em vários textos bíblicos, os quais iremos analisar:
a) “Eu declarei: vós sois deuses” (Sl 82,6). Este mesmo texto foi citado por Jesus (Cf. Jo 10, 34) quando argumentava sua própria identidade divina.
b) “Por elas nos foram dadas as preciosas e grandíssimas promessas, a fim de que assim vos tornásseis participantes da natureza divina, depois de vos libertardes da corrupção que prevalece no mundo como resultado da concupiscência” (2Pd 1,4). Pedro trata da plenitude da vida nova em Cristo que implica em participarmos da natureza divina. O termo grego "κοινωνοὶ” foi traduzido na maioria das versões da Bíblia na língua portuguesa, como “participantes”. Porém, o termo grego aparece pelos menos cinco vezes no NT e foi traduzido como: “cumplices” (Mt 23,30), “sócios” (Lc 5,10), “comunhão” ou “participantes” (1Cor 10,18), “compartilhando” ou “participantes” (2Cor 1,7), “solidários” ou “companheiros” (Hb 10,33).
c) “Amados, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3, 2). “Semelhantes” em grego é “ὅμοιοι”. O termo aparece pelo menos em mais seis ocorrências no NT (Cf. Lc 7,31-32, Lc 12,36, Ap 1,15, Ap 2,18, Ap 9,7) e é traduzido como semelhantes ou sempre no sentido de comparação (“como o...”).
d) “Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, e a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). A expressão grega "συμμόρφους τῆς εἰκόνος", “conformes à imagem”, aparece uma única vez no NT no texto citado.
e) “E nós todos que, com a face descoberta, contemplamos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito” (2Cor 3,18). A Expressão “transfigurados na mesma imagem” ("εἰκόνα μεταμορφούμεθα"), manifesta o projeto de Deus que gradualmente vai transformando o homem em sua própria imagem. Trata-se de um retorno ao projeto inicial no qual Deus nos criou a “sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). Pelo pecado, nós corrompemos essa imagem divina. Pela ação do Espírito, Paulo deixa claro que podemos alcançar novamente esse projeto divino. O termo grego “μεταμορφούμεθα” significa “transformados”, implica em mudança da forma, do interior. É diferente de "μετεμορφώθη" que aparece em Mt 17,2, traduzido como transfigurado. Transfigurar é uma mudança da figura, da aparência exterior.
Os textos bíblicos citados e comentados são provas contundentes que, desde sempre, o projeto do Pai para o homem é a sua deificação, ser como Ele. Trata-se não de um esforço meramente humano, mas é fruto da graça: “Pela ação do Senhor, que é Espirito” (2Cor 3,18). O grande problema em ser como Deus é querer conquistar como usurpação, por esforço pessoal movido pelo orgulho, como foi a proposta da serpente para Eva (Gn 3,5). Jesus, o novo Adão, mostrou que o ser divino passa pelo esvaziamento: “Ele, estando na forma de Deus não usou de seu direito de ser tratado como um deus mas se despojou tomando a forma de escravo” (Fl 2,6-7). Jesus esvaziou-se (ἐκένωσεν), fez o caminho da “kenosis”, do esvaziamento de si mesmo e foi elevado (Cf. Fl 2,9). Adão e Eva fizeram o caminho do orgulho e foram expulsos da vida divina (Cf. Gn 3,23).
O ser humano foi criado para ser divino, para participar da natureza divina. Trata-se de um projeto de “ser por graça, aquilo que Deus é por natureza”. Isso implica que, se Deus é perfeito, o homem é chamado à perfeição: “Portanto, deveis ser perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
A mística cristã contribuiu muito com a reflexão da deificação do homem. Vejamos alguns pensamentos dos místicos cristãos:
a) “Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus” (Catarina de Gênova);
b) “Assim, quando a alma tirar de si, totalmente, o que repugna e não se identifica à vontade divina, será transformada em Deus por amor” (João da Cruz). O itinerário espiritual de transformação em Deus proposto por João da Cruz implica em ir ao nada para se chegar ao todo: “Amar a Deus consiste em despojar-se de tudo quanto não é Deus – imediatamente a alma se ilumina e se transforma em Deus”. Acrescenta João da Cruz: “O amor produz igualdade e semelhança”.
c) “Ele veio ao nosso encontro e conviveu conosco, tornando-se um de nós, para nos elevar e nos conduzir a si. Diz um salmo que ele subiu pelo mais alto dos céus ao Oriente (cf.Sl 67,34), isto é, para a excelsa glória da sua divindade, como primícias e antecipação da nossa condição futura; mas nem por isso abandonou o gênero humano, porque o ama e quer elevar consigo a nossa natureza, erguendo-a do mais baixo da terra, de glória em glória, até torná-la participante da sua sublime divindade” (André de Creta – Séc. III d.C. ) (L.H, v.II, p.366-367).
O projeto de ser como Deus já estava presente em Gn 2,18: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer”. O texto fala de morte (aniquilamento – kenosis) para se chegar à vida divina. Já em Gn 3,4 a serpente nega à morte: “Não, não morrerei!”. A serpente engana e induz o homem a ser como Deus sem passar pelo esvaziamento.
Se o projeto de Deus para o homem foi sua divinização, por que Deus permitiu o pecado original? Segundo Tomás de Aquino, “nada obsta' a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São Paulo: 'Onde abundou o pecado superabundou a graça" (Rm 5,20). E o canto do Exultet: "Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor".
O pecado trouxe como consequência a perda da graça da santidade originária. No entanto, Jesus ao assumir a nossa humanidade, veio nos devolver a graça da santidade. Na Encarnação ocorre um processo de inauguração da assunção redentora da natureza humana. Segundo Santo Irineu, “Deus se tornou homem para que o homem se tornasse Deus”.
Portanto, após o que foi aprofundado, resta-nos chegar a seguinte conclusão: Ser como Deus por meio do esvaziamento, pela graça, não constitui um pecado, mas um projeto do Pai para todos os seus filhos. Ser perfeito como o Pai, deve ser uma busca cotidiana que não se alcança pelo orgulho, pelo esforço pessoal, mas pela graça.

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Lúcio Rufino Pinheiro

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